“O menino que escrevia versos”: Mia Couto.

Introdução
Escolhi “dedicar” este trabalho ao conto: «O menino que fazia versos» de Mia Couto. De entre outras, optei por escolher esta história porque admiro a forma como o menino encara a vida, sonhando, pois como ele próprio diz, é o melhor que sabe fazer. “ O que melhor sei fazer, excelência, é sonhar.”
Outro motivo pelo qual escolhi este conto foi devido ao facto de o menino ser tão maturo e, principalmente, sensível, apesar de ter crescido num meio onde tal sensibilidade é encarada com enorme hostilidade: “ Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era por cobro àquela vergonha familiar.”
“Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos”
Categorias da narrativa
Este conto tem como tema a incompreensão e, até a ignorância.
A incompreensão devido aos pais não entenderem necessidade do menino de sonhar e a ignorância porque confundiam o talento para a poesia com uma doença. “Ele escreve versos! Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra.”
Relativamente ao assunto, o autor apresenta-nos três personagens principais, o menino, o médico e a mãe do menino, que estão inter-ligados. A mãe do menino leva-o ao médico por achar que ele está doente e, por sua vez, o médico interna-o, não por motivos de saúde, mas por querer ouvir o que ia no coração da criança: “Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto de internamento do menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração.”
Acção
As sequências da acção deste conto encontram-se encadeadas, pois trata-se de um relato de uma única história, em torno de um problema específico: o menino que escrevia versos.
O conto apresenta uma sequência inicial, onde os pais preocupados levam o seu filho ao médico, por acharem que escrever versos é uma doença. O autor usa as frases “ o pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias”, para realçar a opinião dos pais.
Numa segunda sequência, o médico faz algumas perguntas ao menino, mas, quando o menino está prestes a declamar um dos seus poemas, este acaba por lhe dizer que não pode perder tempo com coisas insignificantes: “ Não tenho tempo para isto, moço, isto aqui não é uma clínica psiquiátrica''. Porém a mãe do menino insiste e o doutor acaba por ficar com o seu caderno de versos.
Já na sequência final, o menino acaba por ser internado, quando, na semana seguinte, regressa àquele hospital, mas não por estar doente, e sim pela sua sabedoria e imaginação. O médico apenas queria ouvir o que ia no coração da criança. “Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto de internamento do menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração.”
Narrador
O narrador deste conto é heterodiegético, isto é, é uma entidade exterior à história, que tem uma função meramente narrativa e que apenas relata os acontecimentos.
Apenas se limita a contar história, sem participar nela: “ A mãe, em desespero, pediu clemência”, “O médico chamou a mãe, à parte”
Quanto ao conhecimento, o narrador é omnisciente. Sabe de tudo o que acontece em todos os momentos e em todos os lugares. Traduz tudo o que as personagens pensam e sentem e também o que fazem ou falam: “ O doutor suspendeu a escrita, A resposta, sem dúvida, o surpreendera”
Espaço
A acção, em termos de espaço físico, situa-se numa clínica, como se pode verificar na seguinte passagem: “E que seria ali mesmo, na sua clínica que o menino seria sujeito a devido tratamento”
O espaço social caracteriza-se pela ignorância por parte dos pais do menino, por pensarem que o seu filho está doente por escrever versos, tal como se pode verificar nos seguintes excertos do conto: “ O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?''
Também, se caracteriza pela indiferença do médico pelo caso do menino. “ Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhum clínico psiquiátrico.”
É numa clínica que a acção do conto decorre.
Tempo
No que diz respeito ao tempo, o autor não refere a que altura do dia a acção decorre. O tempo histórico é indeterminado.
Porém, alguns excertos do conto, tais como “ Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto de internamento do menino” dá-nos o conhecimento de que o médico ia visitar o menino durante a parte da manhã e da tarde.
Personagens
Quanto às personagens deste conto, existem três personagens principais e uma secundária: o médico, a mãe do menino e o menino (personagens principais) e o pai do menino (personagem secundária).
O menino era muito sonhador, mas, ao mesmo tempo, maturo. Tinha muita imaginação e um dom para a escrita. Esses seus traços percebem-se na forma de como ele encara a vida, sonhando e na sabedoria presente nas respostas dadas ao médico tais como: “Dói-me a vida, doutor”.
O médico, por sua vez, era uma pessoa impaciente, mas, ao mesmo tempo, sensível.
Quando o menino ia começar a declamar um dos seus versos, o médico disse-lhe que não tinha tempo para o aturar. Porém, é ele quem passa uma ordem médica para o menino ficar internado, mesmo sem razão, pois, na verdade, o menino não estava doente. Ele apenas queria ouvir e saber o que ia no coração do menino. “O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.”Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica que o menino seria sujeito a devido tratamento. “
A mãe do menino, a Dona Serafina, era uma pessoa sem conhecimento, ignorante, mas ao mesmo tempo preocupada. O que fazia dela ignorante é o facto de pensar que o seu filho estivesse doente apenas por escrever versos. Contudo, era uma mãe muito preocupada com o filho, pois assim que descobriu que ele escrevia, levou-o logo ao médico, com a esperança que houvesse uma cura para a doença de seu filho. “A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio.”
Já o pai do menino era um mecânico, que apenas sabia interpretar motores, e nunca soube ser romântico para a sua mulher, Dona Serafina. O melhor elogio que ele lhe conseguiu dar foi dizer-lhe que ela cheirava a óleo Castrol. Partilhava da mesma opinião que a sua esposa relativamente ao filho:” o menino tinha algum distúrbio por escrever versos.” O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto?”
Trabalho realizado por Joana Veríssimo, 10º7 nº17

Pequena colectânea de contos.

Retrato de Mónica, Sophia de Mello Breyner Andresen
Mónica é uma pessoa tão extraordinária que consegue simultaneamente: ser boa mãe de família, ser chiquíssima, ser dirigente da «Liga Internacional das Mulheres Inúteis», ajudar o marido nos negócios, fazer ginástica todas as manhãs, ser pontual, ter imensos amigos, dar muitos jantares, ir a muitos jantares, não fumar, não envelhecer, gostar de toda a gente, gostar dela, dizer bem de toda a gente, toda a gente dizer bem dela, coleccionar colheres do séc. XVII, jogar golfe, deitar-se tarde, levantar-se cedo, comer iogurte, fazer ioga, gostar de pintura abstracta, ser sócia de todas as sociedades musicais, estar sempre divertida, ser um belo exemplo de virtudes, ter muito sucesso e ser muito séria.
Tenho conhecido na vida muitas pessoas parecidas com a Mónica. Mas são só a sua caricatura. Esquecem-se sempre ou do ioga ou da pintura abstracta.
Por trás de tudo isto há um trabalho severo e sem tréguas e uma disciplina rigorosa e constante. Pode-se dizer que Mónica trabalha de sol a sol.
De facto, para conquistar todo o sucesso e todos os gloriosos bens que possui, Mónica teve que renunciar a três coisas: à poesia, ao amor e à santidade.
A poesia é oferecida a cada pessoa só uma vez e o efeito da negação é irreversível. O amor é oferecido raramente e aquele que o nega algumas vezes depois não o encontra mais. Mas a santidade é oferecida a cada pessoa de novo cada dia, e por isso aqueles que renunciam à santidade são obrigados a repetir a negação todos os dias.
Isto obriga Mónica a observar uma disciplina severa. Como se diz no circo, «qualquer distracção pode causar a morte do artista». Mónica nunca tem uma distracção. Todos os seus vestidos são bem escolhidos e todos os seus amigos são úteis. Como um instrumento de precisão, ela mede o grau de utilidade de todas as situações e de todas as pessoas. E como um cavalo bem ensinado, ela salta sem tocar os obstáculos e limpa todos os percursos. Por isso tudo lhe corre bem, até os desgostos.
Os jantares de Mónica também correm sempre muito bem. Cada lugar é um emprego de capital. A comida é óptima e na conversa toda a gente está sempre de acordo, porque Mónica nunca convida pessoas que possam ter opiniões inoportunas. Ela põe a sua inteligência ao serviço da estupidez. Ou, mais exactamente: a sua inteligência é feita da estupidez dos outros. Esta é a forma de inteligência que garante o domínio. Por isso o reino de Mónica é sólido e grande.
Ela é íntima de mandarins e de banqueiros e é também íntima de manicuras, caixeiros e cabeleireiros. Quando ela chega a um cabeleireiro ou a uma loja, fala sempre com a voz num tom mais elevado para que todos compreendam que ela chegou. E precipitam-se manicuras e caixeiros. A chegada de Mónica é, em toda a parte, sempre um sucesso. Quando ela está na praia, o próprio Sol se enerva.
O marido de Mónica é um pobre diabo que Mónica transformou num homem importantíssimo. Deste marido maçador Mónica tem tirado o máximo rendimento. Ela ajuda-o, aconselha-o, governa-o. Quando ele é nomeado administrador de mais alguma coisa, é Mónica que é nomeada. Eles não são o homem e a mulher. Não são o casamento. São, antes, dois sócios trabalhando para o triunfo da mesma firma. O contrato que os une é indissolúvel, pois o divórcio arruína as situações mundanas. O mundo dos negócios é bem-pensante.
É por isso que Mónica, tendo renunciado à santidade, se dedica com grande dinamismo a obras de caridade. Ela faz casacos de tricot para as crianças que os seus amigos condenam à fome. Às vezes, quando os casacos estão prontos, as crianças já morreram de fome. Mas a vida continua. E o sucesso de Mónica também. Ela todos os anos parece mais nova. A miséria, a humilhação, a ruína não roçam sequer a fímbria dos seus vestidos. Entre ela e os humilhados e ofendidos não há nada de comum.
E por isso Mónica está nas melhores relações com o Príncipe deste Mundo. Ela é sua partidária fiel, cantora das suas virtudes, admiradora de seus silêncios e de seus discursos. Admiradora da sua obra, que está ao serviço dela, admiradora do seu espírito, que ela serve.
Pode-se dizer que em cada edifício construído neste tempo houve sempre uma pedra trazida por Mónica.
Há vários meses que não vejo Mónica. Ultimamente contaram-me que em certa festa ela estivera muito tempo conversando com o Príncipe deste Mundo. Falavam os dois com grande intimidade. Nisto não há evidentemente, nenhum mal. Toda a gente sabe que Mónica é seriíssima toda a gente sabe que o Príncipe deste Mundo é um homem austero e casto.
Não é o desejo do amor que os une. O que os une e justamente uma vontade sem amor.
E é natural que ele mostre publicamente a sua gratidão por Mónica. Todos sabemos que ela é o seu maior apoio; mais firme fundamento do seu poder.
Sophia de Mello Breyner Andresen Contos ExemplaresPorto, Figueirinhas, 1996 (29ª ed.).

O assalto, Mia Couto
Uns desses dias fui assaltado. Foi num virar de esquina, num desses becos onde o escuro se aferrolha com chave preta. Nem decifrei o vulto: só vi, em rebrilho fugaz, a arma em sua mão. Já eu pensava fora do pensamento: eis-me! A pistola foi-me justaposta no peito, a mostrar-me que a morte é um cão que obedece antes mesmo de se lhe ter assobiado.
Tudo se embrulhava em apuros e eu fazia contas à vida. O medo é uma faca que corta com o cabo e não com a lâmina. A gente empunha a faca e, quanto maior a força de pulso, mais nos cortamos.
— Para trás!Obedeci à ordem, tropeçando até me estancar de encontro à parede. O gelo endovenoso, o coração em cristal: eu estava na ante-câmara, à espera de um simples estalido. Cumpria os mandamentos do assaltante, tudo mecanicamente. E mais parvalhado que o cuco do relógio. O que fazer? Contra-atacar? Arriscar tudo e, assim sem mais nem nada, atirar a vida para trás das costas?— Diga qualquer coisa.— Qualquer coisa?— Me conte quem é. Você quem é?Medi as palavras. Quanto mais falasse e menos dissesse melhor seria. O maltrapilho estava ali para tirar os nabos e a púcara. Melhor receita seria o cauteloso silêncio. Temos medo do que não entendemos. Isso todos sabemos. Mas, no caso, o meu medo era pior: eu temia por entender. O serviço do terror é esse — tornar irracional aquilo que não podemos subjugar. — Vá falando.— Falando?— Sim, conte lá coisas. Depois, sou eu. A seguir é a minha vez.
Depois era a vez dele? Mas para fazer o quê? Certamente, para me executar a sangue esfriado, pistolando-me à queima-roupa. Naquele momento, vindo de não sei onde, circulou por ali um furtivo raio de luz, coisa pouca, mais para antever que para ver. O fulano baixou o rosto, e voltou a pistola em ameaça.
— Você brinca e eu …Não concluiu ameça. Uma tosse de gruta lhe tomou a voz. Baixou, numa fracção, a arma enquanto se desenvencilhava do catarro. Por momento, ele surgiu-me indefeso, tão frágil que seria deselegância minha me aproveitar do momento. Notei que tirava um lenço e se compunha, quase ignorando minha presença.
— Vá, vamos mais para lá.
Eu recuei mais uns passos. O medo dera lugar à inquietação. Quem seria aquele meliante? Um desses que se tornam ladrões por motivo de fraqueza maior? Ou um que a vida empurrara para os descaminhos? Diga-se de passagem que, no momento, pouco me importavam as possíveis bondades do criminoso. Afinal, é do podre que a terra se alimenta. E em crise existencial, até o lobisomem duvida: será que existe o cão fora da meia-noite?
Fomos andando para os arredores de uma iluminação. Foi quando me apercebi que era um velho. Um mestiço, até sem má aparência. Mas era um da quarta idade, cabelo todo branco. Não parecia um pobre. Ou se fosse era desses pobres já fora de moda, desses de quando o mundo tinha a nossa idade. No meu tempo de menino tínhamos pena dos pobres. Eles cabiam naquele lugarzinho menor, carentes de tudo, mas sem perder humanidade. Os meus filhos, hoje, têm medo dos pobres. A pobreza converteu-se num lugar monstruoso. Queremos que os pobres fiquem longe, fronteirados no seu território. Mas este não era um miserável emergido desses infernos. Foi quando, cansado, perguntei:
— O que quer de mim?— Eu quero conversar.— Conversar?— Sim, apenas isso, conversar. É que, agora, com esta minha idade, já ninguém me conversa.
Então, isso? Simplesmente, um palavreado? Sim, era só esse o móbil do crime. O homem recorria ao assalto de arma de fogo para roubar instantes, uma frestinha de atenção. Se ninguém lhe dava a cortesia de um reparo ele obteria esse direito nem que fosse a tiro de pistola. Não podia era perder sua última humanidade — o direito de encontrar os outros, olhos em olhos, alma revelando-se em outro rosto.
E me sentei, sem hora nem gasto. Ali no beco escuro lhe contei vida, em cores e mentiras. No fim, já quase ele adormecera em minhas histórias eu me despedi em requerimento: que, em próximo encontro, se dispensaria a pistola. De bom agrado, nos sentaríamos ambos num bom banco de jardim. Ao que o velho, pronto, ripostou:
— Não faça isso. Me deixe assaltar o senhor. Assim, me dá mais gosto.
E se converteu, assim: desde então, sou vítima de assalto, já sem sombra de medo. É assalto sem sobressalto. Me conformei, e é como quem leva a passear o cão que já faleceu. Afinal, no crime como no amor: a gente só sabe que encontra a pessoa certa depois de encontrarmos as que são certas para outros.
Mia Couto

O caçador, Miguel Torga

Trôpego, o Tafona já não chegava às perdizes da Cumieira. Por isso, arrastava-se até Pedralva e caçava de espera. Caíam rolas no cedo, uma lebre ou outra pelo ano adiante, e coelhos quase sempre. No defeso, fornecia a casa e a barriga sem fundo do compadre Frederico; no tempo da permissão, vendia-lhe a Joana Benta as caveças na Vila.
- Veja vossemecê... - dizia ele, a contratar o preço. - Eu sei lá!...
Com oitenta e cinco anos, a vida fora-lhe sempre estranha como se a não tivesse conhecido. Casara, tivera filhos, mas nada disso o tocara por dentro. Virgem e selvagem na alma, continuava a caçar, e só embrenhado entre giestas e urgueiras é que ouvia, se ouvia, os clamores da mulhner e o ganido das crias.
Saía cedo, sempre supersticioso das menstruações da Camila, a vizinha do lado, que lhe mudavam a direcção do chumbo, e regressava altas horas da noite, colado ao granito das paredes, e assim escondido dos olhos curiosos da povoação.
- Por onde andaste?
- A pobre da Catarina, a princípio, ainda tentou encontrar naquele destino pontos de referência em que pudesse firmar-se. Mas as respostas vinham tão vagas, tão distantes, que se atirou às leiras e deixou o homem às carquejas. Não era que ele mesmo enredasse os caminhos e despistasse conscientemente a companheira. As peripécias da caça e a cegueira com que galgava os montes é que o impediam à noite de relatar o trajecto seguido. Se quisesse e soubesse dizer por que trilhos passara, falaria de veredas e carreiros que nunca conhecera, descobertos na ocasião pelo instinto dos pés e rasgados no meio de uma natureza cósmica, verde como uma alucinação, com alguns ramos vistos em pormenor, por neles pousar inquieto um pombo bravo ou se aninhar, disfarçada, uma perdiz. Ás vezes até se admirava, ao regressar a casa, de tanta bruma e tanta luz lhe terem enchido simultaneamente os olhos. Serras a que trepara sem dar conta, abismos onde descera alheado, e um toco, um raio de sol, o rabo de um bicho, que todo o dia lhe ficavam na retina. É claro que nem sempre as horas eram assim. Algumas havia de perfeita consciência, em que nenhum pormenor da paisagem lhe escapava, as próprias pedras referenciadas, aqui de granito, ali de xisto. Mas, mesmo nessas ocasiões, qualquer coisa o fazia sonâmbulo do ambiente. Era tanta a beleza da solidão contemplada, despegava-se das serranias tanta calma e tanta vida, os horizontes pediam-lhe uma concentração tão forte dos sentidos e uma dispersão tão absoluta deles, que os olhos como que lhe abandonavam o corpo e se perdiam na imensidão. Simplesmente, essa diluição contínua que sofria no seio da natureza não excluía uma posse secreta de cada recanto do seu relevo. Uma espécie de percepção interior, de íntima comunhão de amante apaixonado, capaz de identificar o panasco de Alcaria pelo cheiro ou pelo tacto. A caça fora a maneira de se encontrar com as forças elementares do mundo. E nenhuma razão conseguira pelos anos fora desviá-lo desse caminho. A meninice começara-lhe aos grilos e aos pardais, a juventude e a mairoidade passara-as atrás de bichos de pêlo e pena, e agora, velho, as contas do seu rosário eram meia dúzia de cartuchos que, sentado, ia esvaziando no que aparecia. E a vida, a de todos os dias e de toda a gente, com lágrimas e alegrias, ambições e desalentos, ficara-lhe sempre ao lado, vestida de uma realidade que que não conseguia ver. A aldeia formigava de questões e de raivas, e ele coava- lhe apenas a agitação de longe, vendo-a fumegar na distância, ao anoitecer, e acariciando-a então num cansaço doce e contemplativo.
- Casou a Dulce...
- Ah, sim?...
Ouvira, de facto, imprecisamente, a voz do sino grande chegar repenicada e festiva ao Falição, mas o seu espírito não pudera nesse momento, nem podia agora, descer da nuvem de abstracção que o envolvia.
- Muito bonita ia o demónio da rapariga!
Humana, mulher, a Catarina tentava chamá-lo a uma consciência que reanimasse fogueiras mortas, sonhos desfeitos. Nada. O pensamento dele não estava ali: perdia-se nos projectos do dia seguinte, já cheio do rumor alvoroçado do bando de perdizes que sabia ir levantar da cama ao romper da manhã.
- Morreu a Palhaça...
- Ah, morreu?
E continuava a dar à manivela do rebordador, encontrando no cartucho, túmido como uma semente, não sabia que verdade mais profunda e mais transcendente do que aquela morte.
A velhice e o reumatismo tentaram com toda a brutalidade metê-lo noutros varai. Mas ele lutava, e, embora limitado às cercanias da aldeia, continuava ainda a sonhar.
Contudo, sem a liberdade absoluta dos longes, o seu espírito já não podia voar como dantes. A povoação ficava-lhe demasiado perto para lhe ser possível um alheamento como o de outrora. E os olhos, cansados e traídos, começaram a mostrar-lhe o mundo triste dos outros. Contra vontade, observava, então. Mas em casa, à noite, a mulher punha o acontecido a uma luz tão desconforme com o que ele vira, tão alheia à sua compreensão, que fechava a boca e não respondia.
- Os Canedos berraram...
- Eu vi...
- A cunhada chamou curta à Ana... O que ouvira eram gritos, evidentemente, insultos, com toda a certeza, mas nomes asssim... E uma tristeza muda apertava-lhe o coração.
- Um roubo em casa do Antunes...
- Bem me pareceu...
- Batatas, trigo, muita roupa, um presunto...
Quase que surpreendera o Rodrigo e a mulher com a boca na botija, e sabia que não, que o que esconderam na mina velha, e pudera examinar à vontade, era uma sombra daquilo. De maneira que cada vez se metia mais consigo, com medo do vidro de aumento que deformava tudo e envenenava os sentimentos. Porque uma coisa sabia ele: é que quase um século de caça não lhe endurecera nem lhe empeçonhara a alma. Matara, sim, e matava ainda, se podia, mas não era com ódio, a gritar maldição, que o tiro partia. Mais amorosamente do que mortalmente, o dedo premia o gatilho. E quando, a seguir, a lebre esperneava ou a codorniz gemia, a sua mão aligeirava docemente aquela agonia, numa carícia aveludada. Entre o sangue de pertiz morta - que através do cotim da calça, morno, lhe acordava a consciência da pele - e o seu próprio sangue, não havia o muro de nenhuma desarmonia. A morte que a arma fazia tinha no mesmo instante uma ressurreição dentro dele.
Mas a aleluia do formigueiro humano que o rodeava era outra.
- A Rosária a flara em moralidade! Se reparasse na filha...
- A Matilde? Qu fez ela?
- Nem tu sabes!
Palavra, que não sabia. Atravessara os anos como um duende, puro, alheio à raiva e à ganância, inocente, pronto a comover-se diante da primeira flor. Uma virtude, sobre todas, conservara sempre: a da lisa naturalidade. E por isso, no meio da incapacidade que sentia para entender o tecido de razões com que era feito o mundo que o cercava, a malha que menos o prendera era aquela onde se dabatiam forças e gestos de amor. O cio, a brisa de sémen que agitava todos os seres vivos durante alguns dias em cada ano, sabia-lhe à frescura de uma onda sagrada. Então, oleava e arrumava a arma, e os seus olhos, de caçador ainda, seguiam a revoada do casal de melros, o trajecto de um coelho, as pegadas da raposa, mas para os acompanharem comovidos naquela dádiva sensual e procriadora.
Infelizmente, só ele é que entendia de uma maneira assim inocente as coisas que tinham intimidade de ninho e calor de seiva. Porque a aldeia, que olhava compreensivamente as reses alevantadas, diante de uma rapariga cega de amores erguia-se como se visse um crime.
- Ela e o Avelino parecem cães à cainça.
- E que mal há nisso? Maiores e vacinados, que tinha que ver o mundo com o que o corpo lhes pedia? Mas os pais, aqui-del-rei que os enforcavam se olhassem sequer um para o outro, e a terra inteira aplaudia. Acontecia ainda que o Travassos, todo lá da mãe da rapariga, punha em semelhante martírio a sombra de uma perseguição.
De fora, mas infelizmente não de tão longe como desejava, o Tafona assistia à cena. Sentado à sombra da nogueira molar, e perto da poça onde vinham beber, esperava as rolas. E lá em baixo, na veiga, o seu olhar cansado ia acompanhando a comédia. A cachopa, de molho à cabeça, a pasar na Silveirinha; o rapaz a deixar a rabiça na lavrada e a sair-lhe ao caminho; e o esqueleto deo Travassos, abelhudo e ciumento, a correr a avisar as famílias.
Via e ficava a malucar naquilo, no contra-senso de tudo e de todos. Pois não seria melhor, mais justo, mais humano, deixá-los juntarem-se livremente, à lei da natureza? Contudo, daí a nada, a rapariga ia a toque de caixa pelo Teixo abaixo, e o rapaz retomava o arado a ouvir berros do pai.
- Uma pouca vergonha... - recomeçava a Catarina à noite, depois do caldo.
- O quê?
- O que há-de ser? A Matilde e o Avelino... Se não o Travassos...
Calou-se como de costume. Decididamente, cada vez entendia menos tal mundo.
Mas as pernas atraiçoavam-no miseravelmente, e embora quisesse fugir para muito longe, tinha de se resignar às leis da idade e caçar de emboscada coelhos pacatos na vinha velho do prior.
Era um Setembro puro. Videiras que pareciam cedros e cachos com bagos como bugalhos. Manco, o Tafona, foi-se arrastando e ainda a tarde vinha a cair além-Doiro já ele estav no seu posto, sentado, imóvel e silencioso, com a arma engatilhada sobre a coxa.
Como habitualmente, quase nem respirava. Por muito inocentes que fossem os láparos, farejavam ruído a cem léguas. E o Tafona, conhecedor daqueles ouvidos, apertava os pulmões.
A espera nunca lhe dava inteira paz de espírito. Forçava-o a uma espécie de compromisso com a parte traiçoeira da vida, estremando os campos do agredido e do agressor. Entre ele e o bicho não havia, daquela maneira, um verdadeiro encontro, um embate de forças. Tudo se passava sem alegria e sem eco, choque abafado, como o de uma pinha aberta a cair no musgo.
Subitamente começou a sentir sons indistintos. Prestou atenção. Passos. Passos de gente, e grande.
- Bolas! - disse, sem abrir a boca. De facto, perdera o tempo. Para que tudo retomasse a quietude inicial e os coelhos se resolvessem a vir gozar a fresca, seriam precisas horas, e então já não teria luz.
Os passos eram da Matilde, sorrateira, a saltar um bardo e a sumir-se na vinha.
- É boa!... - murmurou outra vez intimamente, agora noutro tom.
Mas ainda o seu espanto não acabara, já o Avelino, do lado do monte, lépido, deslizava para o meio da ramagem.
Riu-se. Desta vez riu-se com a sua mansidão habitual, sem barulho, enternecidamente, como se estivesse nos velhos tempos e visse no azul do céu dois pintassilgos a voar para o mesmo ninho.
Infelizmente, os namorados a desaparecerem, e sobre eles, de nariz no rasto, numa perseguição de rafeiro, o Travassos que, por acaso, caminhava direito à arma do caçador.
O Tafona nem teve tempo de pensar. Parou a respiração e encolheu-se quanto pôde atrás do esconderijo.
O abelhudo vinha apressado e chegou a tiro.
- Alto lá! - ordenou-lhe então, sereno, mostrando o corpo.
O Travassos estacou, apalermado. Por fim viu quem era e falou-lhe:
- Sou eu, ó ti Zé!
- Bem sei. Mas não te mexas.
- O Travassos, ti Tafona. Deixe-me ir salvar a infeliz!
A tremer e de olhos esgazeados, o zeloso coscuvilheiro não conseguia perceber. Mas o Tafona tinha-lhe friamente a espingarda endireitada ao peito, e ninguém da aldeia confiava na alma solitária do caçador.
- Alto, e nem tugir nem mugir! Aquelas coisas querem-se na paz do Senhor...
Torga, Miguel, Novos contos da montanha, 13a edição, Coimbra (pp. 53-63)

AS LÁGRIMAS DE DIAMANTINHA – MIA COUTO

Diamantinha chorava tão bem que as pessoas vinham de longe e lhe pediam:
– Chore por mim, Diamantinha.
O visitante sentava na sombra do djambalau e divulgava suas mágoas. Às vezes, pareciam tristezas de bichos. O homem, para ser humano, tem que ser desumano? O que é certo: ninguém tem ombros para sustentar sozinho o peso de existir. Afinal, a vida se confirma a força de rasgão: ela dilacera logo no acto de nascer, separando mais que a própria morte. E assim, também naquela aldeia não havia quem não tivesse motivos para sentar no banco de Diamantinha, requerendo lágrimas na sombra da grande árvore.
Diamantinha gastava o tempo nesse desfilar de desgraceiras. Única condição: ela devia olhar de frente o contador de tristezas, olhos nos olhos, lágrima de um humedecendo a alma do outro. No final, ela baixava o rosto, sacudindo os braços por cima da cabeça. E chorava. Cada lágrima aliviava o confessor, faz conta a mão de um anjo suavizando feridas.
Diamantinha chorava belo e aprazível: nunca ela ranhava, nem carantonheava. Escorriam as lágrimas como simples transbordância., tresvasar de ondas sob as pálpebras, insuficientes diques. A tristeza mungia-lhe os olhos e lá vinha, undoso e gordo, o rosário das lagrimosas.
O marido, calculista, viu nos serviços da esposa uma hipótese de negócio. E havia até urgência: Diamantinha se ia fatigando de brotar tanta água. Um dia, ela esgotaria as fontes. Antes que isso sucedesse, o marido decretou a seguinte ordem:
– Em diante, você só chora para quem paga.
– Mas, marido, isso nem se pode.
– Não se pode!? Quem é você para saber destrançar o possível do impossível?
– É que lágrima é coisa sagrada...
– Conversa, mulher. Sagrados são os tacos, sejam cifrões, sejam cifrinhos.
– Não é desrespeito, mas me diga, marido: se é tão importante o dinheiro, por que você não trabalha para o ganhar?
– Eu? Não posso, estou muito ocupado. Agora, por um exemplo, ando a deixar crescer os bigodes, um de cada lado.
– Você é quem sabe, marido.
Marido está sempre na mão de cima? Homem disfarça que comanda, mulher finge obediências. A ordem das coisas: mundo e vida são o inseparável casal.
E as gentes continuaram afluindo, agora vestidas em clientes. O marido armara a mesa, à entrada da sombra, e cobrava a consulta. E se contentava empilhando as moedinhas enquanto a esposa se derramava, liquidesfeita. Aranha faz sua casa de quê? De lágrimas, aquilo parece seda mas não é senão o coração esfiapadinho. Disso sabia a lagrimadeira diamantinha.
Uma tarde, compareceu no djambulau um tal Florival, um homem estranho, brutamonstro. Dele se dizia ser bebedor de trevas, atravessado de serpente. Corria que o Florival fazia das outras vidas o que a jibóia faz com o cabritinho: enrolava-as e esmiudava-as até ficarem engolíveis. Diferença é que depois ele não engolia nada. Todavia, no caso real, o aspecto sobrava da aparência. O Florival tinha corpo magnífico mas era incompetente para maldades. O homem se aperfeiçoara a palerma, baratonto, estupefátuo.
E tanto era que, aos domingos, o monstro se vestia de mulher, envergando sempre um mesmo vestido castanho com grandes girassóis amarelos. As flores no vestido contradiziam o aspecto malfeitor. O homem era alvo das gerais zombarias – dito, desdito e maldito. Até havia mão que afagavam as falsas curvas do peito.
Pois nessa tarde, o Florival sentou-se na pedrinha, envergonhado a modos de justificar o vestido na conformidade de suas peludas pernas. O que ele confessou fez arrepiar a choradeira. Disse assim: que ele há muitos anos lhe dedicava amor exclusivo, ímpar e imparável.
– Me ama a mim, Florival?
Sacudindo a cabeça, ele lhe pediu para não ser interrompido. Pois, o cada dia lhe dava hoje, ele lhe rezava, lhe enviava as mais subtis prendas. Eram diminutas delicadezas: um raminho, um nó de capim, réstias de ninho. E ela, ela nem notava. E por razão de tanta indiferença, o coração dele se encaroçou. Para poupança de sofrimento Florival se resolveu converter em mulher. Assim, colega de mesmo gênero, ele não a olharia como destino de seus desejos.
– Nós ambos somos ambas.
Diamantinha escutou tudo até ao fim. Levantou-se e espreitou entre os ramos do djambulaueiro. Puxou com força como se entendesse desventar a árvore. Depois chorou, chorou como nunca tinha feito. O marido, vendo a demora, espreitou e lhe fez sinal: havia mais para quem chorar. E fez ponto na sessão.
Na tarde seguinte, Florival regressou e foi o mesmo derrame de pranto. E de novo o marido, zeloso, ordenou parcimónia. Na terceira tarde, Diamantinha deixou que Florival se sentasse, em seus femininos trejeitos, e lhe disse:
– Não tenho mais lágrima.
E pediu um lugarzinho na pedra. Sentou-se, espremida no mesmo assento. Ficaram assim em silêncio até que Diamantinha pediu autorização para ajeitar um girassol que escapava do vestido.
– Está tão velhinho este meu vestidinho...
E trocaram conversas de mulher, os acertos que faltavam no cabelo, o nó no lenço da cabeça, o anel que fugia pela magreza do dedo. Diamantinha lhe pediu então:
– Dê-me as suas mãos. Quero lhe dar uma coisa.
– Não precisa me dar nada, Diamantinha.
– São minhas últimas lágrimas. Me dê as suas mãos. Rápido antes que esfriem.
Florival estendeu as mãos em concha. E dos dedos de Diamantinha penderam aqueles cristaizinhos, desfocadas águas tremeluzindo em fundo escuro. Afinal, aquilo eram diamantes, preciosos tesouros.
– São verdadeiros?
Em amor tudo é verdadeiro. Florival e Diamantinha se fitaram, até seus olhos perderem o pé. Sem dizerem palavra, se enfeitaram entre folhagens, furtando-se pelos matos. Dizem os camionistas que, já noite, viram derivar pela estrada um casal de avessas aparências: ele vestido de mulher, ela em roupas de macho. Tombava uma chuvinha leve, simulando fluir da terra para o céu. E Diamantinha, braços abertos, ajuntava novas gotas em seu peito choradeiro. Mi
a Couto
Medo da Eternidade, Clarice Lispactor
Jamais esquecerei o meu aflitivo e dramático contato com a eternidade.
Quando eu era muito pequena ainda não tinha provado chicles e mesmo em Recife falava-se pouco deles. Eu nem sabia bem de que espécie de bala ou bombom se tratava. Mesmo o dinheiro que eu tinha não dava para comprar: com o mesmo dinheiro eu lucraria não sei quantas balas.
Afinal minha irmã juntou dinheiro, comprou e ao sairmos de casa para a escola me explicou:
- Como não acaba? - Parei um instante na rua, perplexa.
- Não acaba nunca, e pronto.
- Eu estava boba: parecia-me ter sido transportada para o reino de histórias de príncipes e fadas. Peguei a pequena pastilha cor-de-rosa que representava o elixir do longo prazer. Examinei-a, quase não podia acreditar no milagre. Eu que, como outras crianças, às vezes tirava da boca uma bala ainda inteira, para chupar depois, só para fazê-la durar mais. E eis-me com aquela coisa cor-de-rosa, de aparência tão inocente, tornando possível o mundo impossível do qual já começara a me dar conta.
- Com delicadeza, terminei afinal pondo o chicle na boca.
- E agora que é que eu faço? - Perguntei para não errar no ritual que certamente deveira haver.
- Agora chupe o chicle para ir gostando do docinho dele, e só depois que passar o gosto você começa a mastigar. E aí mastiga a vida inteira. A menos que você perca, eu já perdi vários.
- Perder a eternidade? Nunca.
O adocicado do chicle era bonzinho, não podia dizer que era ótimo. E, ainda perplexa, encaminhávamo-nos para a escola.
- Acabou-se o docinho. E agora?
- Agora mastigue para sempre.
Assustei-me, não saberia dizer por quê. Comecei a mastigar e em breve tinha na boca aquele puxa-puxa cinzento de borracha que não tinha gosto de nada. Mastigava, mastigava. Mas me sentia contrafeita. Na verdade eu não estava gostando do gosto. E a vantagem de ser bala eterna me enchia de uma espécie de medo, como se tem diante da idéia de eternidade ou de infinito.
Eu não quis confessar que não estava à altura da eternidade. Que só me dava aflição. Enquanto isso, eu mastigava obedientemente, sem parar.
Até que não suportei mais, e, atrevessando o portão da escola, dei um jeito de o chicle mastigado cair no chão de areia.
- Olha só o que me aconteceu! - Disse eu em fingidos espanto e tristeza. - Agora não posso mastigar mais! A bala acabou!
- Já lhe disse - repetiu minha irmã - que ela não acaba nunca. Mas a gente às vezes perde. Até de noite a gente pode ir mastigando, mas para não engolir no sono a gente prega o chicle na cama. Não fique triste, um dia lhe dou outro, e esse você não perderá.
Eu estava envergonhada diante da bondade de minha irmã, envergonhada da mentira que pregara dizendo que o chicle caíra na boca por acaso.
Mas aliviada. Sem o peso da eternidade sobre mim.
LISPECTOR, Clarice. Medo da eternidade. In: A descoberta do mundo. Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984. p. 446-8.