O cão e o gato

 

As curvas da estrada de Vila Velha, ao longo da Nacional-18, apertam-nos o estômago. Já com o Tejo à vista, perco-me por entre uma vista sem fim de eucaliptos que alimentam a fornalha de fumo constante das fábricas de papel que há na outra margem das Portas de Ródão. Ao som do encanto da natureza, atingimos o local onde a amplitude do raio de incidência do sol permite iluminar o Alentejo a desaguar em Beira Baixa, quando se ouve:

 - Temos uma coisa para vos contar.

 De cabelos pretos e encaracolados, a minha mãe espreita por cima do ombro, pousando o olhar marcado pelas rugas das bochechas cheias em cada um dos três bancos da carrinha ocupados pelas filhas. Ninguém pareceu ouvi-la.

 No banco esquerdo, a minha irmã mais velha, aborrecida pelo facto de estar de castigo por ter chegado tarde a casa na noite anterior, procura a sua mala de onde tira um batom cor-de-rosa choque, uma palete de maquilhagem e o rímel. Ao lado da Susana, no lugar reservado do meio, a ajeitar o cabelo, a Andreia ensaia ao espelho as suas melhores poses. Com a fileira de cima dos dentes à mostra, vai posicionando o pescoço de forma a ser possível disfarçar todas as borbulhas que se encontram na metade esquerda da sua face. Ao lado, em pura adolescência tardia, segue a Vanessa de calças largas, sweatshirt com capuz ajeitado até às orelhas, onde coloca os fones que lhe gritam notas musicais de forma estratégica, para que se note que as letras da Sony condizem com o branco dos ténis Nike.

 Eu vou atrás do banco do meu pai, deitada no tapete da carrinha, bem escondida de qualquer polícia que, no seu dever, se lembrasse de nos mandar parar. O meu pai, de cabelo grisalho e sempre com um sorriso de orelha a orelha, sem que ninguém note, aquieta-me com um piscar de olho através do retrovisor e pergunta:

 - Alguém sabe onde está a gatinha? Bsh, bsh, bsh…

-  Miau! - sussurrei eu.

 O meu pai percebe a intensidade do momento que está para vir, no instante em que a minha mãe lhe pousa a mão na perna. Abranda, de modo a conseguir olhar bem no fundo dos seus olhos esverdeados. A Susana e a Andreia começam a discutir a popularidade das fotos de ambas nas redes sociais. A Vanessa aumenta tanto a música que o meu pai acaba por desligar o rádio.

 No banco da frente continuam a segredar e, naquele turbilhão, fui a única a perceber que tentavam falar connosco, pois além do nervosismo que pairava no ar, as notícias mais importantes acabam sempre a ser ditas pela minha mãe. Com coragem, retorna:

 -  Sabiam que vão ter um irmão?

-  Outro? Ohhhhh não! Mais um, não!

Naquele instante, o eco do grito dado pela Susana à janela esquerda da carrinha, atropelou qualquer pensamento que as minhas irmãs pudessem ter. No entanto, a Andreia chora por dentro o facto de deixar de ocupar o banco do meio e a Vanessa, sem mais nem menos, continua a ouvir a sua música. Eu sorrio. Na emoção do momento, levantei-me do abrigo escondido em que me encontrava para que a polícia não nos mandasse parar e abracei os meus pais, agradecendo-lhes:

 -  Talvez lhe possa ensinar a ladrar para que, no futuro, possamos brincar juntos ao cão e ao gato.

 Mal sabia eu que, naquelas curvas de Vila Velha, naquele ziguezague constante, a felicidade que transbordava de mim teria acabado apenas de começar. De facto, não importa se o espaço é apertado, pois quando o assunto é felicidade, cabe sempre mais um!

  Catarina Almeida, Nº7, 12º2

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